Eu ando sem l’argent toujours!

“Com que superioridade um burro pisaria em uma nota de cem mil-réis?”

Escultura de Noel por Luiz Henrique de Faria

Noel Rosa segundo Luquefar

Estamos no Brasil do ano de 1930, predominantemente rural, recém saído de uma revolução urbana que instituiu a República Nova de Getúlio Vargas. As mulheres vão conquistar, em pouco tempo, o direito ao voto. O Rio de Janeiro, capital federal, dita a moda e os astros da música. Faz sucesso por lá o samba amaxixado de Sinhô e o jeito sertanejo de artistas nordestinos, com direito a “covers” cariocas deste estilo, que chamam a atenção do público. O “Bando de Tangarás” é um deles.

Noel Rosa desponta para a vida artística neste grupo, em um país sem dinheiro, onde desigualdade e preconceitos sociais prevalecem. Tempo do mil-réis, unidade básica da moeda naquele Brasil, onde “um vintém” significava 20 réis e “um tostão”, 100 – um pouco mais, mas quase nada também. As emissoras de rádio começam a ganhar espaço, mas o aparelho receptor custava oitenta mil-réis – quase 20% da renda media mensal de uma família naquele Brasil em formação.

Pois bem: têm vendedores de porta em porta, prestamistas e vigaristas de toda a sorte… Todos conhecem de perto as novas modalidades do comércio a domicílio, com a venda à prestação e o empréstimo a juros. Juros altos! A inflação corre por volta dos 6% ao ano, lentamente corroendo o valor do pouco dinheiro do cidadão. Noel Rosa, jovem de 20 anos, preocupa-se com isto. Como componente do Bando de Tangarás, está ao lado dos futuros ilustres da música, Almirante e João de Barro – o  Braguinha.

Para apresentá-lo simbolicamente nesta edição do blog em sua homenagem, cinco sambas cabem bem como abertura, dentre as 100 músicas escolhidas para nossa lista do centenário de Noel Rosa. Outros caberiam também, é certo. Mas não importa. Naquele Brasil recém saído da revolução, Noel de Medeiros Rosa é o ator, personagem do seu tempo, representante do cidadão comum brasileiro, vivendo na prontidão, na pindaíba, na pendura, com muito humor…

Na próxima edição, domingo, 13 de junho: PRÁ NINGUÉM ZOMBAR DE MIM…

As canções relacionadas

CORDIAIS SAUDAÇÕES (Noel Rosa) 

Samba epistolar. Primeira gravação em 1931 com Noel Rosa e Bando de Tangarás

Estimo que este mal traçado samba
Em estilo rude, na intimidade
Vá te encontrar gozando saúde
Na mais completa felicidade
(Junto dos teus, confio em Deus)

Em vão te procurei, notícias tua não encontrei
Eu hoje sinto saudades
Daqueles dez mil-réis que eu te emprestei
Beijinhos no cachorrinho
Muitos abraços no passarinho
Um chute na empregada
Porque já se acabou o meu carinho

A vida cá em casa está horrível
Ando empenhado nas mãos de um judeu
O meu coração vive amargurado
Pois minha sogra ainda não morreu
(Tomou veneno, e quem pagou fui eu)

Sem mais, para acabar
Um grande abraço queira aceitar
De alguém que está com fome
Atrás de algum convite prá jantar
Espero que notes bem
Estou agora sem um vintém
Podendo, manda-me algum
Rio, 7 de setembro de 31
(Responde que eu pago o selo)

Bando de Tangarás – grupo de jovens músicos, entre 18 e 21 anos, liderado pelo Almirante e do qual faziam parte Noel Rosa, João de Barro, Henrique Brito e Alvinho Ribeiro. Inspirados na temática nordestina e sertaneja, em trabalhos como o do “Turunas da Mauricéia” e outros em voga no Rio de Janeiro, o “Bando” do Almirante vai se dedicar a apresentar temas sertanejos, a maioria de própria lavra. Mas também ao samba, como este delicioso, de Noel. Circula no “You Tube” um vídeo com o único registro cinematográfico do grupo, que se apresentava quase sempre caracterizado de “capiau da roça”.

Vintém – O mesmo que 20 réis, na antiga moeda e que significa também dinheiro pouco, mas pouco mesmo!

7/09 – A Independência do Brasil é comemorada em sete de setembro. Percebe-se a provocação de Noel nesta referência “cívica”.

Samba epistolar – epístola é uma carta escrita em versos – uma forma utilizada por antigos escritores. Noel fez esse seu “samba epistolar”.

COM QUE ROUPA? (Noel Rosa) 

Samba. Primeira gravação em 1929 com Noel Rosa

Agora vou mudar minha conduta
Eu vou prá luta, pois eu quero me aprumar
Vou tratar você com força bruta
Prá poder me reabilitar
(Pois esta vida não está sopa)

Eu pergunto com que roupa…
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

Agora eu não ando mais fagueiro
Pois o dinheiro não é fácil de ganhar
Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro
Não consigo ter nem prá gastar
(Eu já corri de vento em popa)

Mas agora, com que roupa…
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

Eu hoje estou pulando como sapo
Prá ver se escapo
Desta praga de urubu
Já estou coberto de farrapo
Eu vou acabar ficando nu
(Meu terno já virou estopa)

Eu nem sei mais com que roupa…
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

Seu português, agora, deu o fora
Já foi-se embora e levou seu capital
Esqueceu quem tanto amou outrora
Foi no Adamastor prá Portugal
(Prá se casar com a cachopa)

Eu pergunto com que roupa…
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

Noel Rosa – Em depoimento a seu tio Eduardo Corêa de Azevedo, diz sobre o Com que roupa?: “é um samba que acabo de fazer. É sobre o Brasil. O Brasil de tanga!” (João Maximo e Carlos Didier apresentam outros contraditórios e engraçados depoimentos do autor sobre a música, em oportunidades distintas, no livro “Noel Rosa – uma biografia”).

Adamastor – Está na última estrofe, que Noel não registrou na gravação. É o navio cruzador da Marinha Portuguesa (que navegou entre 1897 e 1933).

Cachopa – Podemos entender moça virgem ou até rapariga, prostituta, como quisermos.

Com que roupa – será “com que dinheiro”?

DE BABADO (Noel Rosa-João Mina) 

Samba de partido-alto. Primeira gravação em 1936 com Noel Rosa e Marília Baptista

De babado, sim
Meu amor ideal
Sem babado não

Seu vestido de babado,
Que é de fato alta-costura
Me fez sábado passado
Ir a pé à Cascadura
(E voltei de cara-dura!)

De babado, sim
Meu amor ideal
Sem babado não

Com um vestido de babado
Que eu comprei lá em Paris
Eu sambei num batizado
Não dei palpite infeliz
(Você não viu porque não quis!)

De babado, sim
Meu amor ideal
Sem babado não

Quando eu ando a seu lado
Você sobe de valor
Seu vestido sem babado
É você sem meu amor
(É assistência sem doutor!)

De babado, sim
Meu amor ideal
Sem babado não

Quando andei pela Bahia
Pesquei muito tubarão
Mas pesquei um bicho um dia
Que comeu a embarcação
(Não era peixe, era dragão!)

De babado, sim
Meu amor ideal
Sem babado não

Brasileiro diz meu bem
E francês diz mon amour
Você diz: vale quem tem
Muito dinheiro prá pagar meu point-à-jour
(Eu ando sem l’argent toujours!)

De babado, sim
Meu amor ideal
Sem babado não

Vou buscar um copo d’água
Para dar à minha avó
Não vou de bonde porque tenho mágoa
Não vou a pé porque você tem dó
(Vamos comprar o Mossoró!)

De cavalo, sim
Meu amor ideal
Sem cavalo, não
(Mas o cavalo de babado)

João Mina – O “Almanaque do Carnaval”, de André Diniz, apresenta João Mina – o parceiro de Noel Rosa na música “De babado” – como integrante da Deixa Falar (primeira escola de samba criada por Ismael Silva) além de exímio tocador de cuíca, que da qual autoproclamava inventor. O blog “Samba da Tenda” o cita como lendário partideiro dos morros cariocas. De fato, “De babado” traz o estilo característico dos sambas de partido-alto, historicamente cantados com refrão fixo e estrofes de versos improvisados.

Marília Baptista – Marília da Conceição Ferreira Baptista (13/04/1918 – 09/07/1990) foi intérprete predileta de Noel Rosa. Ainda com 14 anos apresenta-se em programação de uma entidade recreativa, da qual participara o Bando de Tangarás. Noel vai conhecê-la melhor dois anos depois, já atuando como elogiada cantora de rádio, em 1934 – ano de sorte para Marília. Depois estudou solfejo, piano e violão clássico no Instituto Nacional da Música, tornando-se também compositora.

Mon amour – Nos anos 30 o francês era a língua em voga, preferida dos grã-finos. Autores populares da música brasileira utilizaram-na com ironia. Noel foi mestre desta artimanha, como agora: mon amour (meu amor), point-à-jour (para um estilo de ponto no bordado, de acabamento sofisticado) e sem l’argent toujours (sem dinheiro sempre – uma forma deliciosa de realçar o miserê geral).

Mossoró – Nome do cavalo de corrida que ganhou o Prêmio Brasil em 1933.

SEM TOSTÃO (Noel Rosa) 

Samba. Primeira gravação em 1932 com Arthur Costa

De que maneira
Eu vou me arranjar
Pro senhorio não me despejar?
Pois eu hoje saí do plantão
Sem tostão! Sem tostão!

Já perguntei na Prefeitura
Quanto tenho que pagar
Quero ter uma licença
Prá viver sem almoçar
Veio um funcionário
E gritou bem indisposto
Que prá ser assim tão magro
Tenho que pagar imposto!
(Mas vejam só!)

De que maneira
Eu vou me arranjar
Pro senhorio não me despejar?
Pois eu hoje saí do plantão
Sem tostão! Sem tostão!

E quando eu passo pela praça
Quase como o chafariz
Quando a minha fome aperta
Dou dentadas no nariz
Ensinei meu cachorrinho
A passar sem ver comida:
Quando estava acostumado
Ele disse adeus à vida!

Arthur Costa – Do Rio de Janeiro, RJ. Cantor e compositor, ator, motorista de táxi, gravou algumas músicas de Noel. Destaque do teatro de revista do Rio de Janeiro.

Sem tostão – Como o vintém, significa dinheiro pequeno! Um níquel de um tostão valia 100 réis.

CEM MIL-RÉIS (Noel Rosa-Vadico) 

Samba. Primeira gravação em 1936 com Noel Rosa e Marília Baptista

Você me pediu cem mil-réis
Prá comprar um soirée
E um tamborim
O organdi anda barato prá cachorro
E um gato lá no morro
Não é tão caro assim

(mulher)
Não custa nada
Preencher formalidade
Tamborim pra batucada
Soirée prá sociedade
(homem)
Sou bem sensato
Seu pedido atendi
Já tenho a pele do gato
Falta o metro de organdi

Você me pediu cem mil-réis
Prá comprar um soirée
E um tamborim
O organdi anda barato prá cachorro
E um gato lá no morro
Não é tão caro assim

(mulher)
Sei que você
Num dia faz um tamborim
Mas ninguém faz um soirée
Com meio metro de cetim
(homem)
De soirée
Você num baile se destaca
Mas não quero mais você
Porque não sei vestir casaca

Vadico – Oswaldo Gogliano (24/06/1910 – 11/06/1962), pianista, um dos mais preparados nomes da música brasileira, é o parceiro de Noel em “Cem mil-réis”. Compositor refinado, arranjador e maestro, assinou com o poeta da Vila onze canções. Nos Estados Unidos, onde viveu por nove anos radicado na Califórnia, obteve destaque na prática musical.

Soirée – Novamente o francês, dos sofisticados, contrapondo-se à realidade dura do dia a dia, com ironia sagaz: o significado do termo é festa ou reunião social noturna. Na música, refere-se ao vestido chique, utilizado nestas sessões, pelas madames (que também vem de ma dame, minha dama, do francês).

Tamborim – “Os animais doam suas peles para o bem do samba”… assim deviam pensar, nos morros cariocas, caçadores de gatos para a fabricação artesanal deste instrumento de percussão característico do gênero.

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18 respostas para Eu ando sem l’argent toujours!

  1. Descobri estas pérolas musicais do Noel em 1931.

    • toninhocamargos disse:

      Noel é mesmo fabuloso, Francisco. Agradecemos pelo comentário e visite outras páginas do blog.

  2. Lérida disse:

    Amei estas maravilhas
    Parabéns!!!!

    • toninhocamargos disse:

      Lérida, Noel é muito especial. É um de nossos grandes mestres. Agradecemos pela visita e, por favor, divulgue este blog.
      Luiz / Regina / Toninho

  3. Margaret Presser disse:

    Parabéns pelo blog! Muito bom!

  4. Edith Nichikaua Almeida disse:

    Maravilha poder ouvir essas preciosidades que são raridade.
    Parabéns pela coletânea e obrigada pela oportunidade de poder ouvir.
    Abraço
    Edith

    • toninhocamargos disse:

      Agradecemos pela visita e volte sempre. Divulgue este trabalho.

      • CARLINHOS NOGUEIRA disse:

        Toninho, esse tem sido o meu blog preferido e não me canso de visitá-lo e quanto mais eu ouço NOEL ROSA, mais eu gosto de NOEL ROSA, que, certamente, é o nosso maior compositor e o maior GÊNIO da nossa música, que Deus levou muito jovem e muito cedo, mas, mesmo partindo tão cedo, esse GRANDE MESTRE nos deixou essa OBRA MARAVILHOSA, que toca fundo em nosso Coração. Coisa de Mestre. NOEL é GÊNIO, é INCOMPARÁVEL. Falar de NOEL, é Chover no molhado, pois tudo que eu estou dizendo, já deve ter sido dito, mas nunca é demais falar de NOEL, O IMORTAL NOEL. Sempre fui fã de Carteirinha do Chico (Buarque), mas depois de ouvir NOEL, mais atentamente e mais detalhadamente, através do Blog “100 CANÇÕES PARA O CENTENÁRIO”, eu mudei de ideia. Claro que eu continuo fã e admirador do Chico, mas pelas circunstâncias, pelo fato da vida longa do Chico (quase 70 anos) e da vida tão breve de NOEL, ai está o diferencial do POETA DA VILA, viveu tão pouco e “CONSTRUIU” tanto. Duvido que algum compositor, no Brasil ou em outro país, aos 26 anos tenha feito tantas músicas e de altíssima qualidade, como as músicas de NOEL.
        Desculpe-me, Toninho, falar tanto, mas me emociona muito falar de NOEL e eu tenho certeza que onde ELE está, fica Feliz pela Legião de Fã, que eu espero que aumente cada vez mais; “NOEL NÃO MORREU”, talvez fosse a frase que todos diriam se NOEL tivesse nascido nos EUA. Mas, pra nossa felicidade, NOEL É BRASILEIRO.
        Toninho, gostaria de parabenizá-lo pelo Conjunto “Coisas Nossas”.
        Um Grande Abraço e “CORDIAIS SAUDAÇÕES”
        CARLINHOS NOGUEIRA – Cantor e Compositor

  5. CARLINHOS NOGUEIRA disse:

    Toninho Camargos, no meu comentário, acima, eu me confundi e parabenizei você pelo conjunto “Coisas Nossas”, pois achava que você fosse componente do mesmo, só depois de postado o comentário é que percebi a gafe.
    Por favor, Toninho, me desculpe pelo equivoco
    CARLINHOS NOGUEIRA – Cantor e Compositor

  6. Marcio Cotrim disse:

    Parabens pelo blog, uma maravilha!!!!

  7. Boa tarde, gostaria de mais informações sobre os equipamentos, as técnicas e processos utilizados na gravação do LP com que roupa, você sabe onde posso encontrar?

  8. Murilo disse:

    Muito bom, Toninho e Luiz Henrique.

  9. R. Neves disse:

    Nossa, ver que aínda existem pessoas como vocês que se dedicam a produzir essas peças culturais nos deixam repletos de orgulho e de esperança na decadente raça humana. Parabéns e obrigado, não parem de produzir esperanças

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